Docetistas – precursores da Matrix

Paulo Avelino

Um trecho do quadragésimo sétimo capítulo do inevitável Gibbon trouxe-me a memória dos docetistas, sua heresia e o mal ou bem que fez. [Inevitável – uma californiana me escreveu Cedo ou tarde todos vêm à Califórnia. Analogamente, cedo ou tarde todos leem o autor do Declínio e Queda do Império Romano, talvez até seu quadragésimo sétimo capítulo].

A Etimologia como sempre nos socorre. O Padre Isidro Pereira S.J. em seu Dicionário Grego-português informa que o verbo dokéo significa, entre outros, ter boa aparência, passar por, ser reputado como, aparentar, fingir. Antenor Nascentes no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa estabelece sobre os adeptos, com sentido redutor e não sem algum moralismo: estes heresiarcas pretendiam que Jesus só tinha nascido, morrido e ressuscitado em aparência. De maneira um pouco mais amena (embora não muito) a nona edição do Webster´s Collegiate Dictionary acrescenta a belief opposed as heresy. Como essa obra é bem mais recente, trata-se de sinal dos tempos, I guess.

Santa Sofia, em Istambul (fonte: Wikipedia)

A franquia Matrix entrou com vitória no imaginário da cultura Pop das últimas décadas, formando com Blade Runner e Mad Max uma santíssima Trindade da angústia, embora tal pequena lista possa dar margem a controvérsias. Matrix difere das suas concorrentes. Estas enfocavam o colapso, sendo Blade Runner na megalópole e Mad Max em pequenas comunidades. Matrix pensa a aparência. As Corporações de Blade Runner e a patética Bartertown de Mad Max se mostram indiscutivelmente reais. A Matrix é uma aparência, dokéo.

Gibbon posiciona os docetistas como os segundos heréticos na sua linha do tempo. Usando de certa retórica afirma que o sangue de Jesus ainda estava recente no Monte Calvário quando eles começaram sua pregação. Uma de suas correntes pregava que o trecho do Evangelho antes do batismo no rio Jordão não passava de pantomima. E mais ainda o que ocorreu depois: pessoas ouviam suas palavras, viam sua imagem, a turba o torturou com a ira, mas tudo consistia em teatro. Com piedosos propósitos de salvar o mundo.

A Matrix não salva – de fato o mundo já se perdeu. Quer mantê-lo em aparência. Indefinidamente, com propósitos difíceis de saber além da dominação pura. Um mundo que, perdido, é reputado como, aparenta, finge. Como os heresiarcas que adormecem em algum capítulo de Gibbon.

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